quinta-feira, 24 de abril de 2008

Talvez Robert Walser possa me definir


(...) Devo responder que não sei exatamente o que lhe dizer. Acodem-me este e aquele pensamento, pois sou uma pessoa, o senhor precisa sabê-lo, com a qual não vale a pena travar conhecimento. Sou extraordinariamente descortês e, quanto a bons modos, tenho-os tanto quanto nada. O senhor gostaria de ter diante de seus olhos um tipo assim esquisito? Peço-lhe: abandone imediatamente o desejo de me conhecer. A gentileza não combina comigo. Eu teria de retribuí-la; e exatamente isso eu gostaria de evitar, pois sei que a conduta cortês e bem-educada não me cabem. E também não gosto de ser gentil; isso me entedia. Suponho que seja alguém que se utiliza de expressões tão finas e tão belas quanto as suas tem um salão. Eu, contudo, somente sou alguém na rua, no mato e no campo, na taberna e em meu próprio quarto;e, como homem em pleno uso da razão, devo evitar o que me atemoriza. Como o senhor vê, sou sincero. . Das duas uma: ou o senhor iria me aborrecer com os seus modos, ou eu iria aborrecê-lo com os meus. O senhor não faz idéia do quão sinceramente eu aprecio e prefiro a situação em que vivo. Até hoje não me ocorreu de me queixar da vida; pelo contrário: valorizo a tal ponto o que está à minha volta que sempre me esforço zelosamente por protegê-lo. Moro numa casa velha e desordenada. Ela, no entanto, me faz feliz. Preciso ter à minha volta um determinado peso e uma certa quantidade de abandono, degradação e desunião. Caso contrário, a respiração se me torna penosa. A vida seria uma tortura se eu tivesse de ser fino, esmerado e elegante.Desse modo fala não o orgulho, mas uma pronunciada sensibilidade para a harmonia e a comodidade. Por que eu deveria ser o que não sou e não ser o que sou? Isso seria estúpido. Quando sou o que sou, estou contente comigo mesmo; e então tudo reverbera, tudo está bem à minha volta. Veja o senhor, tudo se passa assim: um casaco novo é o bastante para tornar-me descontente e infeliz; compreenda, portanto, que eu odeio tudo aquilo que é belo, novo e refinado, e aprecio tudo o que é velho, surrado e gasto. Não gosto de parasitas em particular; não gostaria de comer os bichos assim de repente, mas eles não me perturbam. Na casa em que moro, há uma porção de parasitas, e no entanto eu gosto de morar aqui. Quando tudo no mundo for novo e estiver em ordem, então eu não vou querer viver, eu vou me matar. Ao temer que eu vá apenas perturbá-lo e não venha a representar-lhe nenhuma utilidade nem entretenimento, um outro temor se aviva, qual seja (para falar aberta e francamente), o de que o senhor venha a me perturbar e não possa ser simpático e agradável comigo. Há uma alma na condição de cada pessoa; o senhor deve sabê-lo imediatamente, e eu devo imediatamente informá-lo: prezo muito o que eu sou, tão insuficiente e pobre quanto eu possa ser. Tomo toda inveja por estupidez. A inveja é uma espécie de loucura. Respeite cada um a situação em que se encontra: assim cada um estará servido. Temo ainda a influência que o senhor poderia exercer sobre mim, ou seja, receio o supérfluo trabalho interior que haveria de ser realizado para defender-me de sua influência. Por isso, não corro atrás de novas relações pessoais, não posso correr atrás delas. Conhecer uma nova pessoa: isso demanda no mínimo um quê de trabalho, e eu acabo de me permitir dizer-lhe que eu aprecio o conforto. O que o senhor há de pensar de mim? E no entanto a questão me é indiferente. Eu quero que isso me seja indiferente. Não desejo tampouco pedir-lhe desculpas por estas palavras. Isso seria retórico. Sempre se é indelicado quando se diz a verdade. Amo as estrelas, e a Lua é minha amiga secreta. Sobre mim paira o céu. Tanto tempo quanto eu viva, não desaprenderei jamais de olhar para ele. Encontro-me na Terra: este é o meu ponto de vista. As horas troçam de mim e eu troço delas. Não posso imaginar um colóquio mais aprazível. O dia e a noite são a minha companhia. Privo da confiança do entardecer e do amanhecer. E com isso saúda-o cordialmente o pobre jovem poeta.


"CARTA DE UM POETA A UM SENHOR" (ROBERT WALSER
)

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